sexta-feira, 6 de março de 2009

Dias Frios


Nicholas é proprietário de uma pequena edificação rural ao norte do Canadá e sai cedo de casa para seus afazeres rurais, retornando sempre ao final do dia. Usa a trilha por ele mesmo recém aberta por entre pinheiros e muita neve, ladeando o lago Mirrow. Carrega consigo as pesadas provisões do dia para sua esposa Anne e o filho Cash, de pouco mais de três anos.
Na casa rústica, de madeira local, abre a porta e vê Anne em suas tarefas diárias, próxima ao fogão lareira, visivelmente abalada. A casa se encontra desordenada, objetos fora do lugar, algumas coisas pelo chão. Nicholas interpreta os sinais.
Com a chegada do marido Anne põe-se aos prantos, descontrolada. Ela sente sua relação desgastada pela solidão, uma vez que o marido fica grande parte do dia ausente e, nesta época de rígido inverno, visitas de vizinhos e amigos são raras. Nicholas, precavido, vai primeiro ao quarto de Cash, que dorme um pesado sono. Uma conversa com a esposa era imprescindível e o momento favorável. Acalentá-la era mister. Ao tocá-la nos ombros, pelas costas, Anne se arrebenta em fúria, tresloucada.
- Nich, não suporto mais esta ausência.
- Amor, vamos pensar juntos em alguma coisa, já falamos sobre isto. Se a vida aqui não lhe agrada podemos nos mudar para Quebec.
- Sempre acontece isto!
- Isto o que, Anne?
- Sempre chega do trabalho dizendo que as coisas vão se resolver.
- Anne, entenda. Precisamos lutar contra o que a aflige, mas tenho me esforçado o quanto posso e você tem visto.
- Visto o quê? Você só sabe trabalhar, trabalhar e me deixa só.
- Não se lembra do seu aniversário do ano passado, quando convidei pessoalmente, porta a porta todos os nossos amigos para uma festa surpresa?
- E o que tem isto?
- Apareceu tanta gente!
- Sim, é verdade.
- Anne, em algumas semanas o degelo começa, poderemos sair, fazer compras, ir aos restaurantes, brincar com Cash no parque...
Nicholas ainda buscava apaziguar a esposa possessa e irracional, quando Anne atira o que tem às mãos ao alto e sai correndo pela porta segurando o vestido roto, sem os devidos agasalhos. Nicholas a segue, alcançando-a alguns metros após a cerca da propriedade. A neve caía e o frio era intenso. Ao interpelá-la Anne desabafa:
- Seu egoísmo, Nich, seu desprezo por mim, sua ausência, sua ausência, sua ausência...
Falava repetidamente, aos prantos, voz diminuta, mãos ao peito, joelhos na neve, abraçada por trás pelo marido atônito. Nicholas a ama e fala do amor para tentar movê-la:
- Lembre-se Anne, querida, o amor tudo suporta. Quantas vezes passamos por momentos difíceis e superamos porque o que nos une é mais forte. É o amor.
- Amor? Que amor, Nich? Isso é amor? Não há amor.
- Sim, Anne, nosso amor. O que aconteceu com ele?
- Morreu.
Nicholas, estupefato, julgava ser um acesso de ira passageiro e que, com alguns minutos Anne repensaria suas falas, como já fizera outras vezes. Deixou-a ali, esperando o momento de sua lucidez, quando retornará para casa.
Anne jamais voltou. Nicholas ainda questiona se o amor é mesmo tão poderoso quanto cria. Se não seria uma criação utópica de apreciadores de luas e estrelas. Se a vida não seria embasada, na realidade, na dureza do gelo e na frieza de um coração que só labuta. A vida deve ser uma eterna labuta, um dia de cada vez, com seus enigmas, mistérios, dores e a cama vazia à noite.
Cash cresce com um vazio na alma que não entende, mas sente o arpão diuturnamente, como uma presa em agonia que se renova a cada alvorecer. O pequeno garoto, de fronte sóbria demais para a idade, sente que há algo na vida além da trilha entre pinheiros e dias frios, mas este algo deve estar além das montanhas, do lado oposto ao lago Mirrow, cuja simples menção do nome lhe causa fobias agudas incompreensíveis à luz de seus tenros dias.




Marcelo Leite Batista

3 comentários:

Gustavo disse...

que maravilhoso cabeçalho! 'head'
e que estad-ispiritu...

ab

>¨<

NB disse...

Eu quero voltar a postar aqui! >.>"


Anos após uma saída repentina, volta o filho (nocasoafilha) pródigo!!!!!!


Ahhhhhh.

nbvviana@gmail.com


Beijos NB.

Cah, a gente conversa mais pelo e-mail. O matheus não te passou ele antes???

Beijos.

Ray* disse...

que bonito=3